O Marco Legal das Garantias é a legislação que busca modernizar, no Brasil, regras relativas ao mercado de crédito e suas garantias, bem como as medidas extrajudiciais para recuperação de crédito, conforme o art. 1º da Lei n. 14.711/23 (a “Lei”). Segundo o relatório “Doing Business” divulgado pelo Banco Mundial em 2020, a taxa de recuperação de garantias do Brasil é de apenas 18%, contra uma média mundial de 37%. Para se ter uma ideia da baixa posição do País no ranking, México e Chile apresentaram taxas de recuperação de 64% e 42%, respectivamente, conforme o site Infomoney. Qualquer operador do mercado de crédito sabe que o Brasil apresenta peculiaridades e desafios na recuperação de créditos, especialmente burocracia, morosidade e altos custos.
Endereçar e amenizar as dificuldades de recuperação de créditos no Brasil justamente é o objetivo da nova Lei. Aliás, a própria tramitação do Marco Legal das Garantias ilustra um pouco a atual situação política do País: a Lei previu a busca e apreensão extrajudicial, como meio de “desjudicialização” da consolidação da propriedade no caso de alienação fiduciária em garantia sobre bens móveis, medida de especial interesse para o segmento automotivo. Embora o Congresso Nacional tenha aprovado o dispositivo, este veio a ser posteriormente vetado pelo Presidente da República. O Presidente da Câmara dos Deputados manifestou sua contrariedade com o veto, inclusive perante o próprio Presidente da República, em razão de negociações anteriores havidas com membros do Poder Executivo no sentido da aprovação. O veto acabou então por ser derrubado pelo Congresso Nacional, encontrando-se a medida hoje plenamente vigente.
A lógica do sistema anterior é justamente que cada garantia era oferecida para um único credor, individualmente. Ou seja, como bem observou o professor Carlos E. Elias de Oliveira, em artigo publicado no “site” Migalhas, era um desestímulo para que um mesmo bem servisse de garantia a mais de um empréstimo, o que não foi bom para a economia e ocasionou situações de “capital morto”, ou seja, existência de bens cuja expressão econômica não poderia ser integralmente aproveitada pelo mercado, por obstáculos de ordem puramente jurídica. Assim, a nova Lei permite que um mesmo bem pode ser alienado fiduciariamente mais de uma vez, para garantir dívidas diferentes, à semelhança do que já ocorre com as hipotecas. Isto é, passa-se a admitir a alienação fiduciária em primeiro, segundo e terceiro graus, para diferentes credores, “destravando” com isso o valor total do mesmo bem para fins da contratação de sucessivas operações de garantia.
A Lei também regulou o “recarregamento de garantia real” para hipotecas e alienações fiduciárias de imóveis. Com isso, pode-se formalizar novas operações de crédito entre as mesmas partes, aproveitando-se um imóvel que já havia sido dado em garantia anteriormente. Suponha que o imóvel valha “X” e o valor do saldo de uma operação garantida seja “X-2”; o conceito legal proposto é que o “saldo do valor do imóvel” livre até seu valor total de “X” possa ser utilizado para novas operações de garantia, mediante averbação registral do ato de “recarregamento” da garantia, evitando-se o fenômeno do “capital morto” para fins de concessão de crédito.
Estímulo importante, específico para operações de aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor, é a regra da “no negative equity guarantee”, ou seja: apenas nestas operações com imóveis residenciais, o devedor não responde por eventual saldo devedor excedente ao valor obtido com a excussão do imóvel. O risco máximo do devedor passa então a ser a perda do imóvel dado em garantia. Em outras operações financeiras que não sejam a compra ou construção de imóvel residencial próprio, tais como, por exemplo, empréstimos pessoais, ou para aquisição de imóvel comercial, ou operação de consórcio, não há esta proteção para o devedor.
Buscou a Lei também incentivar a desjudicialização do crédito hipotecário. Exceto para operações no segmento de agronegócio, o crédito hipotecário poderá ser executado judicial ou extrajudicialmente, perante o cartório de registro de imóveis competente, a critério do credor. Tal como na alienação fiduciária, o credor precisará realizar 2 (dois) leilões na execução extrajudicial, caso o primeiro tenha sido frustrado. Levando em conta as restrições regulatórias do Banco Central para que as instituições financeiras sejam proprietárias de imóveis, a Lei estabeleceu duas hipóteses para o credor no caso de frustração do segundo leilão na execução extrajudicial da hipoteca: (i) apropriar-se do imóvel pelo valor correspondente aos pisos do segundo leilão; (ii) realizar a venda do bem, dispensadas as formalidades do leilão, como mandatário do devedor, no prazo de 180 dias após o último leilão. Não havendo êxito na venda, o Banco terá que se apropriar do bem, na forma da primeira opção.
Figuras interessantes previstas pela nova Lei também são o contrato de administração fiduciária de garantias e o agente de garantia. O contrato de administração fiduciária pode ser uma forma eficiente de concentração e terceirização de cobrança de créditos. É um contrato estabelecido entre o credor e o agente de garantia. A gestão de garantias objeto deste contrato consistirá, basicamente, em prestação de serviços de cobrança judicial e extrajudicial do crédito, ou seja, a própria execução das garantias por parte do agente de garantias, que passa a ter legitimidade processual para atuar em face do devedor.
Figuras mais atuais também foram previstas pela nova Lei, como a disciplina do concurso de credores em caso de execuções extrajudiciais de garantias, com o respectivo quadro geral de credores elaborado pelo registrador de imóveis. Também as formalizações de contas garantidas ou “escrow accounts” pelos tabeliães de notas, ou seja, a administração de conta bancária vinculada para servir de garantia à satisfação de certa obrigação. Por fim, após a derrubada do veto pelo Congresso Nacional, a busca e apreensão extrajudicial poderá ser solicitada ao oficial de Registro de Títulos e Documentos competente, no caso de consolidação de propriedade de alienação fiduciária de bens móveis, como nos financiamentos de bens do segmento automotivo.
Com isso, após o necessário equilíbrio obtido no parlamento entre o desenvolvimento do mercado de crédito e as garantias dos consumidores, espera-se que o Marco Legal das Garantias, especialmente por meio de seus procedimentos de execução extrajudicial e redução da burocracia existente, possa servir como um bem-vindo estímulo para a eficiência e redução de custos nas operações de crédito no Brasil.