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A Lei 14.905/2024 e a (In)adequação da Taxa Selic Às Dívidas de Natureza Civil

A Lei nº 14.905, de 28 de junho de 2024, que alterou o artigo 406 do Código Civil, propõe cessar a longa discussão judicial sobre a taxa de juros moratórios a ser aplicada em dívidas de natureza civil, nos casos em que não há previsão contratual expressa.
Para a compreensão das alterações trazidas pela nova lei, cabe breve contextualizar o tema que está, inclusive, em julgamento, perante a Quarta Turma da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, sob regime de afetação, por meio do REsp nº 179598-2/SP.
O ponto central desses debates se baseia, resumidamente, na divergência de interpretações a respeito da antiga redação do artigo 406 do Código Civil, cuja previsão era de que, não havendo convenção ou dispositivo legal específico, os juros moratórios seriam “fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”.
Aos defensores da taxa Selic, sempre foi inquestionável sua aplicação pelo fato de essa ser a remuneração aplicada aos juros de mora incidentes sobre tributos e contribuições arrecadados pelo Fisco Federal, como previsto em artigo 13, da Lei nº 9.065/95.
Por outro lado, os contrários à aplicação dessa taxa se apoiam principalmente no argumento de que o fato dela comportar simultaneamente juros moratórios e correção monetária, por si, já contraria o próprio artigo 406 do Código Civil (que tratava tão somente dos juros moratórios). Posto isso, defendiam que o mais correto seria a aplicação do artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66), cuja redação prevê juros moratórios de 1% em caso de inadimplemento.
Essa vertente destacava o fato de serem independentes os termos iniciais da correção monetária e da aplicação de juros moratórios, nas condenações cíveis, sendo impossível a aplicação simultânea.
Além disso, por se tratar de indexador do Banco Central para o controle da inflação, destinado a empréstimos interbancários, sabe-se que a taxa Selic demonstra variação flutuante, com imprevisíveis e drásticas altas e baixas, por vezes até mesmo apresentando resultado negativo, o que diverge absolutamente do objetivo dos juros moratórios, que é simplesmente a penalidade pelo decurso do tempo.
Nesse particular, no âmbito do julgamento do REsp nº 179598-2/SP acima referido, o Ministro Luís Felipe Salomão chegou até mesmo a mencionar que a aplicação da SELIC seria um provável estímulo ao inadimplemento, pois poderia o devedor “apostar” na sua variação no decurso do tempo, a fim de obter vantagem patrimonial.
Em resumo, o encontro desses dois posicionamentos resultou em décadas de divergência jurisprudencial e doutrinária a respeito do tema.
Apesar de haver uma clara tendência, no já referido REsp nº 179598-2/SP, pela aplicação da taxa Selic, a Lei nº 14.905/24 aparentemente encerrou o debate, pois mesmo fixando a Selic como “taxa legal”, propôs, em partes, soluções aos problemas expostos acima quanto à sua aplicação.
A principal incoerência atribuída à aplicação da Selic foi sanada, visto que a nova lei considerou a independência do instituto dos juros moratórios e, por essa razão, determinou a dedução do índice de atualização monetária (convencionado como IPCA/IBGE em nova redação do artigo 389, parágrafo único, do Código Civil).
Apesar disso, algumas inseguranças permanecem.
Um exemplo disso foi a tentativa de sanar a questão da possível variação negativa da SELIC com a inclusão do parágrafo 3º ao artigo 406, que prevê a equivalência da taxa à zero nos períodos em que obtenha resultado negativo.
Esse dispositivo, ao passo que visa solucionar eventual situação indesejada de “débito ao credor”, mantém uma enorme incoerência ao permitir que os juros de mora sejam nulos em decorrência da variação da taxa legal durante certo período, como se nele não tivesse havido atraso.
Ou seja, o próprio texto legal evidencia o problema repisado diversas vezes pelo Ministro Luís Felipe Salomão no já citado julgamento, de que a inadimplência poderá, em algum momento, ser benéfica ao devedor, ao invés de concretizar a indenização pelo tempo de mora de forma proporcional, como seria, por exemplo, com a taxa de 1% ao mês.
Por fim, destaca-se a tentativa da nova lei de suprimir lacunas, por meio do parágrafo 2º, ao artigo 406, do Código Civil, que determina que o Conselho Monetário Nacional deverá definir a metodologia de cálculo e forma de aplicação, incluindo a questão da capitalização dos juros.
Enfim, apesar da modificação legislativa “adaptar” a aplicação da taxa Selic às dívidas cíveis, como forma de cessar a discussão judicial apresentada, restam questões a serem estabelecidas, que poderão e deverão ser levadas ao Judiciário, notadamente a retroatividade da norma e os efeitos da nova redação do artigo 406 do Código Civil aos inúmeros processos pendentes que poderão sofrer os impactos dessa alteração.

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